Como aconteceu com praticamente todas as pessoas do mundo, no dia 11 de fevereiro de 2013 fiquei assombrado com a notícia da renúncia do papa Bento XVI, e, assim como todos, não entendi nada. Nunca tinha ouvido falar em um papa que houvesse renunciado ao pontificado! Hoje consigo entender a decisão de Bento XVI. No entanto, antes de compartilhar esse meu entendimento com os leitores, eu gostaria de fazer uma breve retrospectiva de como conheci essa personalidade formidável, quando ele ainda era chamado de cardeal Joseph Ratzinger.
No ano de 2002, se não me falha a memória, a Folha de São Paulo publicou em seu suplemento literário – intitulado “caderno mais” – uma matéria acerca do debate entre o então cardeal Ratzinger e o filósofo Jürgen Habermas, ambos alemães. O debate houvera ocorrido em sua terra natal, promovido por uma rede televisiva de lá. Eu, na época, que estava iniciando um curso universitário e já me interessava por filosofia, li com grande entusiasmo a matéria. Claro que eu torcia para Habermas – quem eu considerava um ilustre representante da razão moderna – e esperava que ele desse uma surra no cardeal, cuja figura eu acreditava representar uma ordem arcaica, medieval e ultrapassada. Ratzinger levou a melhor e acabei por ficar com birra dele; afinal, o cardeal havia demonstrado no debate profundos conhecimentos, não apenas em teologia, como também em filosofia.
Deixei a birra de lado, embora eu não conseguisse entender como alguém da Igreja Católica – essa “instituição tão ultrapassada” – pudesse dar uma surra num intelectual secular tão respeitado e glorificado pela mídia. Em 2005, quando da morte de João Paulo II, qual não foi minha surpresa ao constatar a eleição deste mesmo cardeal, de tão profundo conhecimento filosófico, e para o qual novamente torci o nariz após parte da imprensa o chamar de nazista. Não fui averiguar os fatos para checar se ele era nazista ou não, mas fiquei com mais reservas quanto a ele. Teve que passar muito tempo depois para que eu visse o tamanho do absurdo dessa acusação.
No entanto, em 2006, iniciei um mestrado strictu sensu em Estudos da Linguagem; e, em 2007, o já papa Bento XVI veio ao Brasil. Li a cobertura da mídia a respeito da visita e comecei a analisar seus discursos; pois, afinal, eu estava fazendo uma pós-graduação que implicava a análise de discursos o tempo todo, tal como laboratorialistas analisam uma amostra de sangue. Constatei que Bento XVI não pronunciava uma palavra fora do lugar, e que cada frase dele era uma resposta a perguntas feitas cotidianamente por milhões de pessoas.
O interessante era que estas as perguntas não eram aquelas feitas em público, mas as perguntas feitas na solidão, aquelas que fazemos a nós mesmos e a Deus antes de dormir, a expressão de nossas dúvidas mais insolúveis. Mais uma vez fiquei desconfiado e concluí: “não é possível que um homem seja tão bem informado para responder a perguntas feitas em segredo com tamanha precisão!” “Ele certamente deve ter um corpo de assessoria que lhe fornece material muito bem classificado e preciso para a elaboração de seus discursos”. Sucederam-se idéias desse tipo em minha mente, sem que eu conseguisse elaborar nada mais sólido do que meras especulações. Mais uma vez deixei passar, só que minha desconfiança com relação ao Papa só diminuía, ainda mais depois da dura reprimenda que ele desferiu contra os traficantes de drogas, ainda em 2007, aqui no Brasil. Compare essa ação a das nossas autoridades civis, as quais raramente têm coragem de enfrentar o tráfico, que manda e desmanda nestas plagas. Logo depois, fiquei sabendo dos inúmeros livros que ele escreveu, dos inúmeros discursos, das encíclicas, das conferências, e da sua atuação como catedrático em universidades de teologia. Ao mesmo tempo, aprofundei meus estudos em história e filosofia da linguagem (já no doutorado), e conheci as obras de pensadores da Igreja Católica, como Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Duns Scotus, Pascal e Padre Antônio Vieira. Vi como Bento XVI era o seguidor da tradição teológica e filosófica sistematizada por todos esses grandes pensadores, que por sua vez, eram conhecedores da tradição filosófica de Sócrates, Platão e Aristóteles, ou seja, a tradição do conhecimento racional.
O salto de compreensão se deu quando fiquei sabendo do apreço de Bento XVI por Mozart, o compositor que mais se utilizou dos princípios da razão na música erudita. “Este é o papa da razão!”, concluí. Bento XVI havia me convencido da verdade da religião de Cristo, não pelo estímulo a minha fé, mas pelo estímulo intelectual que me seduziu devido ao meu apego à razão! Não poderia esmiuçar o que chamo aqui de verdade, tanto de fé, como de razão; a verdade é a complementação entre as duas (fé e razão). Esta é a verdade da Igreja Católica e não as distorções grosseiras que seus inimigos declarados dizem a respeito dela.
Passo agora a apresentar minha visão acerca da renúncia do papa. Considerando ser ele não apenas conhecedor profundo, como também o guardião da tradição do conhecimento filosófico e da fé em Cristo, penso que Bento XVI quis – e conseguiu – ministrar a maior lição de cristianismo que um papa poderia dar: sua renúncia é uma expressão das renúncias de Cristo por amor a Deus e a humanidade. Explico. Quando passou 40 dias no deserto, Jesus se deparou com a figura de Satanás, que tentou fazê-lo sucumbir à tentação de se tornar o Rei do mundo. Disse o invejoso: “Ajoelhe-se a meus pés e te farei o senhor deste mundo para todo o sempre”. É claro que Jesus o rechaçou. Um pouco depois, já na paixão, Pôncio Pilatos deu azo às inúmeras ridicularizações que Jesus sofreu a caminho da cruz, quando lhe perguntou: “você é o rei dos Judeus?”. Jesus se calou. Diante da insistência de Pilatos, Jesus respondeu, sereno: “meu reino não é deste mundo”. É claro que todos riram muito de Jesus, tanto que os soldados romanos colocaram nele a coroa de espinhos para zombar e ridicularizar de sua condição de “Rei dos judeus”.
Dito isso, qual maior lição de cristianismo poderia ser dada para o mundo atual – que idolatra o poder – do que a renúncia a um dos cargos de maior poder do planeta? Embora tenha perdido muito espaço, a Igreja Católica ainda é muito rica e poderosa, e o Papa, sendo o guardião de tão grandioso tesouro, desfruta de imenso poder. Mas o que faz Bento XVI? Aqueles que querem acabar com a Igreja de Cristo – e isso não é novidade, pois muitos imperadores romanos, bárbaros, secularistas e comunistas já tentaram, mesmo tendo incrível poder e força para isso – acusam o Papa de que? De ser rico, poderoso. Acusam-no de envolver-se em enredos de filmes de quinta categoria, daqueles que envolvem mordomos, ladrões, pedófilos e clérigos corruptos, imaginando-se que, assim como seus detratores, o Papa seria apegado às satisfações rasteiras deste mundo.
Não são poucos, inclusive, os que fazem o possível para ridicularizá-lo; no entanto, Bento XVI nos ensina com sua renúncia: “O reino da Igreja de Cristo não é deste mundo. A Igreja não governa este mundo. A Igreja está aqui para abrir as portas de um mundo mais amplo do que este, que o engloba, mas que não é excluído por ele. Eu, por ser um servo de Cristo, não posso, portanto, governar uma instituição deste mundo, que tem suas falhas, e que, portanto, é uma prova de que a verdadeira infalibilidade está unicamente em Cristo.” Bento XVI é o sucessor de Pedro, o apóstolo que recebeu de Jesus a incumbência de fundar sua Igreja. O sucessor de Pedro, agora papa emérito, irá morar em um simples mosteiro de uma pequenina cidade italiana. Saiu de um dos tronos de maior poder do mundo, para ir morar em uma simples morada interiorana. Alguém consegue imaginar uma atitude mais alinhada com a simplicidade de um pescador de peixes – e de almas – como a de Pedro, o primeiro dos Papas?
Dante Henrique Mantovani
Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina
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