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A entrada dos Cruzados em Constantinopla – Eugène Delacroix (1840)
Para quê o fútil exercício de as contar? A História também se alimenta de estatística, é certo. A Revolução Francesa tem o seu Delacroix e as invasões napoleonicas o seu Goya; a Guerra Civil Espanhola o seu Picasso. Contudo, por vezes há que ceder passagem ao ritmo do movimento, à intensidade do ambiente, ao acento da ecologia. Comparar o acontecimento das Cruzadas com uma sinfonia não será completamente descabido (embora Beethovem tenha-se arrependido de o fazer com Napoleão). (A marcha compreensivelmente não se ajusta, pois obriga-nos a uma contagem, nem que seja inconsciente). No entanto, poderemos ser mais felizes em evocar a longa-metragem. Ao estilo de um filme mudo dos anos vinte, em que os travellings, as panorâmicas, os ângulos da câmara, a profundidade de campo, a combinação de luz e sombra, a montagem, os grandes planos, conseguem mostrar – sem serem incomodados pela dimensão sonora (ou pela cor) – não uma sucessão de eventos estanques, mas somente um único e grandioso fenómeno – A Cruzada.
Talvez fosse necessário invocar o melhor Eisenstein (sem a componente política) para poder captar com o fervor e o realce devidos, essas deslocações em massa de seres humanos. Quais gafanhotos com alma, uma praga de armaduras e cotas de malha metálicas montadas a cavalo, juntamente com esqueletos andantes forrados a peles enrugadas e esforçadas, magras e curtidas pelos elementos rurais e pela costumeira escassez de alimento, com as mãos calejadas pelo rudimentar arado ou martelo que ficou para trás, trespassou as cidades, as aldeias, os campos e os castelos, flanqueou os picos mais elevados, ultrapassou os rios e navegou os estreitos, empurrou as fortificações e ergueu o krak, numa deriva heróica até ao extremo oriental do continente europeu e até aos limítrofes da Ásia.
A História nunca mais seria a mesma. Michelet: “viram-se homens desinteressarem-se subitamente de tudo quanto amavam até então: os barões abandonaram os seus castelos, os artífices os seus ofícios e os camponeses os seus campos, para consagrarem as suas penas e a sua vida a preservar de profanações sacrílegas aqueles dez pés quadrados de terra que haviam acolhido durante algumas horas os despojos terrenos do seu deus”. O voto de cruzado era irrevogável e observava a lei canónica, a sua violação caindo sob o perigo de excomunhão. Os fiéis eram obrigados a pedir autorização ao respetivo pároco e os monges tinham de a obter do seu superior. Mesmo com estes cuidados e preparos, apesar destes contra-pesos, foi tarefa ingrata tentar contêr os entusiasmos arrebatados e aplacar o intenso clamor. Não foram decerto capazes de impedir os desastres nem as carnificinas não forçadas diretamente pela mão inimiga – a Cruzada das Crianças e a Cruzada Popular resultaram em rotundos fracassos e em elevada mortandade.
Nesses dois séculos, a veia mística das peregrinações não cessou por um instante: havia sempre gente a partir para Jerusalém, gente mais ou menos esfomeada, melhor ou pior calçado ou simplesmente descalço, melhor ou pior armado ou simplesmente desarmado, a cavalo ou de carroça ou simplesmente a pé, principalmente da Flandres, da Inglaterra, da Escócia, da Alemanha, da Itália e da França. De facto, muitos homens da França (razão porque em terras do próximo-oriente todos os europeus eram denominados por “francos”). Enfrentando situações atmosféricas e áreas geograficamente agrestes, os desertos tórridos e secos, as tempestades de areia, as cheias do Nilo, lutando em terrenos desconhecidos e em clara inferioridade numérica contra homens mais fortes, mais altos e mais possantes, aguentando as pestes e as doenças, a fome e a sede, os ferimentos, a morte do amigo e do familiar, foram corajosa e abnegamente tentar libertar os Santos Lugares – sob o lema “Deus o quer”!
Seguindo o rumo dos caminhos trilhados, analisando o padrão da formação das poças de sangue dos combates travados e observando a inércia da queda dos corpos, verifica-se que o curso da conceção histórica hegeliana inverteu-se, romando de oeste para este, no sentido da Cidade Santa. O aparente fracasso deste autêntico romance de cavalaria (cinematograficamente adaptável, como sugerimos) não reside na efémera reconquista da cidade de Jerusalém ou na breve duração do Reino de Jerusalém. Apesar do facto inelutável do falhanço em libertar o Santo Sepulcro dos maometanos e malgrado a razia da população europeia (a França praticamente ficou sem nobreza), a recuperação da Terra Santa foi uma ideia plena de grandiosidade e generosidade. Uma ideia digna de Roma. (Nunca foi possível estabelecer uma ligação estável entre cristãos gregos e latinos. O Vigário de Cristo ainda acalentou durante algum tempo a esperança de acabar com o Cisma, mas provou-se sem viabilidade). Nesta grandiosa aventura mística, nesta “Epopeia das Cruzadas” (René Grousset), a pedra de toque reside no nascimento da ideia de cristandade, e com ela, da ideia de uma unidade e de uma identidade europeias. Do espírito europeu.
Escrito por Paulo Pinto. Portal Conservador.