A virgem permaneceu intocada

AS PALAVRAS CULTURA E ÉPOCA podem ser entendidas de formas muito diferentes! Por causa de seu sentido confuso, prefiro empregar outras expressões. Eu diria que o homem é composto de duas partes. Deus e trabalho. Cada estágio que se sucede no desenvolvimento do espírito humano é marcado pela realização de um trabalho lento e de longa duração, executado por gerações.

Um desses trabalhos é o Egito. Outro foi a Grécia. A teologia dos profetas do Antigo Testamento foi um outro. O último, o mais recente, que até agora não foi substituído por nada, e que ainda vem se aprimorando por tudo que é inspirado em nosso tempo, é o cristianismo.

Para lhe mostrar o caráter novo do que foi trazido para o mundo em todo seu frescor – não da forma que você conhece e à qual está acostumada, mas de maneira mais simples, imediata e inesperada – vou estudar com você alguns trechos das missas, em partes pequenas e resumidas.

A maioria dos textos litúrgicos forma um conjunto de imagens do Velho e do Novo Testamento dispostas uma ao lado da outra. Por exemplo, a sarça ardente, o êxodo do Egito, os jovens no forno em chamas, Jonas no ventre da baleia são contrapostas à concepção da Virgem Maria e a ressurreição de Cristo. Nessa frequente e quase constante conciliação do Antigo Testamento com o que é velho, e do Novo com o novo, suas diferenças apresentam-se claramente. Em suma, muitas passagens comparam a maternidade imaculada de Maria com a travessia do mar Vermelho pelos judeus. Por exemplo, um versículo começa com: ‘No mar Morto, foi traçada uma imagem da Virgem Esposa’. E continua: ‘O mar, depois de Israel passar, ficará intransponível, a imaculada, após o nascimento de Emmanuel, permanecerá inviolada’. Ou seja, o mar, após a passagem de Israel, tornou-se novamente intransitável, e a virgem, após dar à luz o Senhor, permaneceu intocada.

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Que tipos de acontecimentos estão colados aqui em paralelo? Os dois acontecimentos são sobrenaturais, os dois são reconhecidos como milagres. Em que viam o milagre essas duas épocas diferentes, o tempo antiquíssimo, primitivo, e o tempo novo, pós-romano, mais evoluído?

Em um caso, por ordem do líder popular, o patriarca Moisés, por meio de um aceno de seu bastão mágico, o mar se abre, deixa passar um povo inteiro, incontável, composto de centenas de milhares de pessoas que, após deixar passar o último deles, fecha-se novamente, cobre e afoga os egípcios perseguidores. O espetáculo tem o espírito da Antiguidade, a fúria do mar que obedece à voz do mágico, grandes multidões amontoadas como os solados romanos em marcha, o povo e o líder, coisas visíveis e audíveis, ensurdecedoras. No outro caso, uma moça comum, à qual o mundo antigo não prestaria atenção, às escondidas e secretamente dá à luz um menino, dá a vida, o milagre da vida, ‘Vida de todos’, como posteriormente o chamam. Seu parto não é legal, não apenas do ponto de vista dos escribas, é também contra as leis da natureza.

A moça engravida não por força da necessidade, mas por milagre, por inspiração. É a mesma inspiração por conta da qual o Evangelho, que contrapõe ao habitual a exceção, e aos dias de trabalho a festa, deseja construir a vida, contrariando qualquer imposição.

Que enorme significado possui a mudança! De que maneira ao céu (pois é com os olhos do céu que se deve avaliar isso, diante do rosto do céu, é na moldura sagrada da singularidade que isso tudo acontece) – de que maneira ao céu, a frequente condição humana insignificante, do ponto de vista da Antiguidade, tornou-se equivalente a uma migração total de um povo? Algo se moveu no mundo. Acabou Roma, o poder de tal magnitude que com as armas impôs a obrigação de viver, sem exceção, como comunidade. Os líderes  e os povos ficaram no passado. A personalidade e o sermão da liberdade vieram em sua substituição. A vida humana individual tornou-se a história divina, encheu com seu conteúdo o espaço do universo.

Como se diz na liturgia da Anunciação, Adão tentou ser Deus e falhou, mas agora Deus se tornou homem para que Adão se tornasse Deus.

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