Longe do campo apologético das disputas entre católicos, ortodoxos e evangélicos, analisaremos aqui as bases do evangelismo e sua falta de qualquer compreensão superior. Sabemos que René Guénon, Julius Evola e outros tradicionalistas foram enfáticos em suas condenações ao protestantismo. Todos autores tradicionais focam suas críticas ao protestantismo em seu caráter de ruptura com a ordem do Cristianismo Tradicional, tanto o Ortodoxo como o Católico Romano – além disso, Guénon vai ainda mais longe e coloca o protestantismo como um quase irmão da modernidade. De fato, além de não possuir qualquer qualificação religiosa e não passar de um simulacro de Cristianismo, o protestantismo gerou uma das maiores aberrações religiosas dos dias de hoje: o evangelismo. É óbvio que sabemos das diferenças entre as seitas protestantes, surgidas na reforma de Lutero, e as seitas pentecostais, neopentecostais, evangélicas e semelhantes. Entretanto, quando falamos que o protestantismo é pai do fenômeno evangélico, não falamos apenas no sentido religioso, pelo fato da reforma de Lutero ter inspirado movimentos anticatólicos, mas sim pela questão que envolve a mentalidade iniciada pela reforma, a do individualismo, a tentativa em separar o homem não só da autoridade eclesiástica, mas também separá-lo da tríade existente em todas as tradições, entre homem, terra e céu.
Em todas as tradições religiosas, vemos que o homem não é apenas um agregado psico-físico possuidor de uma individualidade, mas sim parte de um todo, um reflexo da unidade que há no fim último das coisas. Portanto, na civilização tradicional não se faz sentido falar em consciência individual e individualidade – tais coisas são apenas reflexos da manifestação corpórea, vista como efêmera e passageira. Vemos, por exemplo, a pouca importância que se dava à precisão histórica da autoria de certos livros sagrados, relatos de mitos e tratados filosóficos; tal obsessão só surgiu na academia moderna que, por exemplo, contesta a autoria de diversos tratados da Filocália e de outros escritos dos pais da Igreja, como os tratados de São Dionísio Areopagita, tidos como de Pseudo-Dionísio[1].
Enquanto na Tradição Hindu o homem é visto como uma manifestação do espírito universal, e que para ele deve voltar, no individualismo o homem já não faz mais parte das três naturezas que controlam a manifestação, mas é apenas um agregado que deve buscar a saciedade de seus instintos animais – ele já não é parte de um universo que está além das manifestações físicas, já não é mais o homem conectado às naturezas superiores e inferiores, é apenas um indivíduo sem qualquer ligação além daquelas criadas por manifestações socioculturais. Entretanto, podemos notar que tal fenômeno criou diversas formas de manifestações religiosas. Enquanto o Cristianismo Tradicional relaciona a vida na terra com as batalhas arquétipas entre Miguel e as legiões de Lúcifer, e coloca o fiel da Igreja não só como membro de uma congregação humana, mas também membro de um organismo místico, através das Igrejas triunfante e militante, o cristianismo evangélico (que poderíamos chamar, tomando uma expressão usada para falsos esoterismos, de “cristianismo de pacotilha), ápice do desenvolvimento do individualismo iniciado pela reforma, renega tal integração num cosmos e num ciclo divino, para trocá-lo pela manifestação direta e milagrosa de Deus entre aquele que, através da “aceitação pessoal de Cristo”, foi feito “filho” de Deus e digno de tais intervenções diretas de Deus em sua vida.
Podemos tomar como exemplo uma diferença pouco notada entre aqueles que debatem as diferenças entre os cristãos tradicionais e evangélicos: enquanto nas Igrejas Tradicionais há um calendário litúrgico com símbolos completos da criação até a chegada da Parúsia, o evangelismo substitui tal ciclo por meras reuniões em torno de estudos, cânticos e louvores, aonde a comunhão com Deus, que no Cristianismo Tradicional é feita através da comunhão dos Santos Dons, que concluem os mistérios dos sacramentos e sacramentais através da comunhão com o próprio Deus feito carne e sangue, é trocada por meras experiências pessoais como “dons das línguas” e milagres de “cura e libertação” – experiências meramente pessoais e sem qualquer ligação com o organismo eclesiástico.
Quando analisamos antigos calendários tradicionais, notamos que o ciclo anual estava sempre relacionado ao ciclo de morte e renascimento de uma divindade. O calendário Maia, por exemplo, que só atraiu a atenção do populacho devido a uma suposta profecia apocalípica, tem o deus Quetzalcoatl representado em seu centro, divindade relacionada com morte e ressurreição.
No Budismo Tibetano, vemos a roda do tempo Kalachakra como uma representação de que tudo está sob domínio do tempo, e nele há a representação tanto do nascimento e morte dos corpos físicos como do ciclo das manifestações interiores. Desta forma, vemos novamente que a manifestação não passa de parte da roda que gira em torno de um centro imóvel, estático, que origina a manifestação e esta, por sua vez, gira em torno dela. Tal ensinamento metafísico deu origem ao simbolismo da suástica, um símbolo tão antigo quanto universal. É curioso observar este antigo credo ortodoxo em eslavo-eclesiástico:
Notamos o fato da crucificação aparecer logo ao centro, enquanto outras passagens da vida de Cristo ficam em torno dela. Portanto, não houve dificuldade alguma em adotar e cristianizar antigos mitos e símbolos das tradições pré-cristãs – e por isso alguns evangélicos negam a comemoração do Natal, pois não compreendem o profundo simbolismo da morte e renascimento, recorrente em diversas tradições, como o Cristo Solar, a dança de Shiva e Tamuz. Portanto, tal apego e desespero a negar qualquer influência “pagã” por parte dos evangélicos não é apenas um fundamentalismo bíblico, mas a falta de qualquer compreensão metafísica. Num antigo calendário católico, notamos novamente o calendário como uma manifestação cíclica em torno da Cruz, que representa a morte e ressurreição de Cristo:
Em diversos ícones da Parúsia, Cristo também aparece como centro da roda dos que alcançaram a salvação, a theosis. Portanto, tanto o tempo “profano” como o divino são manifestações cíclicas, giram em torno do Centro que representa o Absoluto, o gerador e sustentador de toda manifestação.
Não é de se espantar que, como criação do individualismo, o evangelismo não tenha qualquer noção da cosmologia e escatologia Tradicional e, portanto, suas noções religiosas não possuem qualquer significado metafísico. É o caso, por exemplo, do apego à Bíblia como única fonte para questões religiosas. Não se trata apenas da rejeição da interpretação dos bispos e do Magistério, mas sim a ruptura com uma comunidade mística, unida através dos sacramentos. Fundamentam na idolatria à Bíblia e colocam em um livro o caminho para a união com o Divino, pois ignoram que para fazer parte do Uno antes é preciso fazer parte de um todo. Enquanto o Cristianismo Tradicional está ao lado de todas as Tradições em sua visão cíclica e da theosis como objetivo em volta da eternidade, que está além do tempo-espaço, para os evangélicos o centro é a Bíblia – o tempo não passa de uma reta rumo ao fim do mundo, com suas interpretações de arrebatamentos e muitas vezes com paraísos idílicos, com a glorificação dos corpos para uma vida semelhante à vida na terra. Quando não há mais a presença mística da Igreja, trocada por uma mera congregação, quando não há mais a comunhão dos santos, que representa a unidade entre as Igrejas triunfante e militante, perde-se todo o significado simbólico da vida na terra como um espelho das realidades superiores, para dar lugar a uma batalha “mundana” entre os fiéis e o diabo, que já não é mais a figura arquétipa que combate constantemente contra as forças divinas, mas sim uma espécie de criatura malfeitora, causadora de males pequenos e grandes, desfeitos apenas através da ligação pessoal do crente com Deus.
Assim podemos caminhar por cada aspecto do evangelismo como a religião do indivíduo, desqualificada de qualquer sacralidade. Já falamos sobre teorias que explicam a degeneração das tradições africanas[2], que foram se afastando das divindades supremas, pois se achavam “abandonados” por elas, buscando aproximação com divindades mais antropomórficas e espíritos de antepassados, capazes de prejudicar e ajudar a humanidade. Não é de se estranhar que a parte dos “testemunhos” é fundamental nos cultos evangélicos, pois para eles são provas da ação de Deus e o mais elevado sinal da validade da religião – ao contrário do Cristianismo Tradicional, que tem na comunhão o seu cume, que liga o homem a Deus e fortalece seu caminho para a theosis[3], a deificação em Cristo o que, não só no discurso, mas também na prática, é muito mais elevado que uma mera libertação de problemas financeiros ou físicos.
Sabemos que o individualismo secular é marcado pelo hedonismo e desespero, já que notamos que individualistas sempre oscilam entre a saciedade de seus apetites e o desespero pela falta de tal saciedade, já que estão desconectados de qualquer realidade superior, vemos que o individualismo evangélico também segue o mesmo caminho – se o fiel está bem de saúde, numa situação financeira estável e com uma “família abençoada”, ele está com Deus, este é o ápice da comunhão divina em tal meio. Mas, se ocorre o contrário, e ele está doente, em péssima situação financeira ou coisa parecida, logo se diz que está “sob maldição”, que precisa de “cura e libertação”. A vida espiritual, portanto, se resume às expectativas do indivíduo. Enquanto os secularistas buscam a cura em meios como análise, auto-ajuda e até mesmo meditação, evangélicos buscam a cura através de discursos de autoajuda semelhantes aos dos secularistas, com chavões do tipo “você é um vencedor” e outras frases feitas que relatam o poder de Deus na vida pessoal; mas não deixam de buscar ajuda em métodos como os das diversas tradições degeneradas, através de patuás (objetos ungidos), pactos que envolvem sacrifício (no caso o único que interessa aos seus líderes é o financeiro) e incorporação de espíritos.
O evangelismo, portanto, não passa da conclusão de um processo degenerativo dentro do Cristianismo, e é um filho do protestantismo como o iluminismo e o individualismo moderno – ressaltando, novamente, que não é um mero filho do aspecto religioso, mas da própria mentalidade do protestantismo que, sem dúvida alguma, é um dos sinais dos tempos.
Escrito por Rafael Daher. Blog pessoal.
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Notas
[1] O Padre Serafim Rose, profundo conhecedor da obra de René Guénon, alerta sobre o interesse moderno nos escritos dos Pais da Igreja: http://orthodoxinfo.com/phronema/rose_mind3.aspx