O feudalismo não acabou. E esta é sua versão moderna, muito mais insensível e inconsequente
“Como é que o cara vai viver com 24 mil reais?” (…) “Infelizmente, não tenho origem humilde. Não estou acostumado com tanta limitação. (…) Estou fazendo a minha parte. Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar R$ 8 mil para poder viver com os meus R$ 24 mil.”
Um procurador do Estado de Minas Gerais está dando o que falar. E não é, certamente, por menos. Num país com quase 13 milhões de desempregados (e esta, sendo uma estatística do governo, é de se imaginar que o número é infelizmente muito maior) e onde 55 milhões de pessoas convivem na pobreza, e com o salário mínimo vigente de R$ 998, o servidor público em questão demonstra que vive em uma ilha da fantasia rodeada por uma bolha intransponível onde ele residiria num “limiar da pobreza”, como é possível escutar no áudio proferido numa sessão da Câmara de Procuradores do MPMG em que ele questiona o procurador-geral da Justiça, Antônio Sérgio Tonet.
Segundo o portal de transparência do MPMG, a remuneração bruta do servidor em questão em janeiro de 2019 foi de R$ 35.462,22, dos quais lhe rende uma remuneração mensal líquida de no mínimo 24 mil reais, valor que não leva em consideração as indenizações e outras remunerações retroativas e/ou temporárias. Ou seja, é mais um ilustre representante da alta burocracia brasileira, sustentado pelo “contribuinte público”, que desconhece a verdadeira realidade sócio-econômica do país em que reside. Uma grande amostra de que existe diversos “Brasis” no que já fora chamada Terra de Vera Cruz.
Por mais infeliz que tenha sido a declaração do membro do Ministério Público, esta é certamente mais uma oportunidade para repensar a desigualdade social criada e fomentada pelo próprio Estado, onde é pago na burocracia estatal salários em média 67% superiores aos que são pagos pelo setor privado. E mais além, revela parte (sendo imensamente gentil) do caráter da alta burocracia que não enxerga à quem eles deveriam servir num Estado democrático.
Esta situação escancara não somente a desigualdade, mas como as elites burocráticas brasileiras são insensíveis para quem vive em outros estratos sociais. Por mais que existam conceituações errôneas sobre o feudalismo – sistema social e político que existiu na Europa durante o medievo – a aristocracia medieval não deixava de servir a “plebe”, no geral. Lhe confiava segurança, um estado de permanência, lhes confiando a ordem e a Justiça do soberano. Nas guerras medievais, não faltam exemplos de monarcas que comandavam pessoalmente as tropas, indo mesmo à frente das batalhas e personificando a nação. No estado moderno, a burocracia sequer enxerga o plebeu. Talvez como a personificação de uma doença altamente infecciosa, ou algo a ser escondido à todo custo, mas certamente alguém à quem não se deve qualquer sentimento. Para o Estado moderno e sua burocracia, o “contribuinte” só existe no momento de pagar os impostos.
O servidor público, membro da alta burocracia, desconhece o que é ser um “servidor” e para quem ele deve de fato explicações. E é essa falta de empatia que contribui para o dissenso social. Ele vive para o salário, é empregado do Estado, trabalha por si e fim. Não que seja crime sobreviver, jamais. A desigualdade social também não deve ser vista por si mesma como algo a ser combatido, posto que a pobreza é uma condição intrínseca do ser humano. E, geralmente, é apropriada como discurso para o fortalecimento do próprio Estado, através do socialismo. Entretanto, a burocracia não deve ser jamais estática ou rígida. É esse quadro que favorece a criação de uma desigualdade mantida por um pequeno aparato de “nobres”. Mais parece algum tipo de feudalismo, porém moderno e totalmente desprovido de suas vantagens.
Burocracia é um termo certamente moderno. E por burocracia devemos compreender como uma classe de funcionários do Estado. Na antiguidade, Aristóteles trata propriamente da aristocracia, como uma forma de governo exercida pelos melhores cidadãos, por seu valor moral e intelectual. Sem maiores dificuldades, a burocracia em Aristóteles também deveria assumir uma nova roupagem aristocrática, dos melhores e destinada aos interesses da pólis, o nosso equivalente de “cidade”. No Estado moderno, a aristocracia não é moral, talvez nem mesmo intelectual. No Brasil, a aristocracia também é dos melhores – mas os melhores não por suas qualidades ou virtudes – apenas porque recebem os maiores salários.
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