A primeira Universidade Católica do mundo

A humanidade conhece, periodicamente, eventos que se transformam em elementos originários e estruturantes da nossa civilização. No início da era cristã, ocorreu um fato cuja complexidade e caráter insólito o transformaram em ponto axial da nossa história ocidental e fonte perene de questionamento. Trata-se do encontro entre o cristianismo nascente e o pensamento helênico

Valendo-se de toda a arquitetônica conceitual da filosófica grega, o pensamento cristão primitivo construiu sua sistematização e consolidação até a etapa final do medievo. Daquele encontro surgiu a questão da articulação entre fé e razão. Encontramos durante esse longo período de quinze séculos diversas posições sobre essa questão que não será completamente resolvida. A questão recebeu atenção crescente na alta idade média, o período da escolástica e no século XIII com o empenho de vários teólogos. No entanto, foi, sobretudo, Tomas de Aquino que conseguiu apresentar uma síntese original entre fé e razão que permitiu uma racionalização da fé colocando de acordo o pensamento antigo e a doutrina cristã.

Nesse ambiente investigativo do medievo cristão nasceram as escolas episcopais e monacais e, posteriormente, as universidades. Não se pode compreender a carreira de um filósofo e de um teólogo medieval sem conhecer a organização do ensino durante o período da escolástica até o século XIV. O termo universitas designa comunidade. A universitas studiorum – universidade dos estudos – é uma forma de comunidade, autônoma e que se livra das amarras do direito comum. A Universitas não designava, então, como a entendemos hoje, um conjunto de faculdades, mas um conjunto de mestres e alunos que se dedicavam aos estudos das artes, do direito e da teologia. Studium generale ou também universale designava um centro de estudos no qual estudantes de origem diversa poderiam ser recebidos.

Foi por necessidade de independência que nasceram as primeiras universidades; independência da autoridade eclesiástica: de fato a primeira geração de universidades, as de Bolonha, de Paris e de Oxford dentre outras, se constituíram em reação contra os bispos que governavam as escolas estabelecidas sob o teto de suas catedrais. Essas universidades conseguiram sua independência graças ao apoio papal. A essas universidades seguiram outras durante o século XIII, XIV e XV. Nenhuma delas recebeu, então, a designação de universidade católica.

Escolhi apresentar brevemente a história e as características de uma universidade que, embora tendo sido instituída no século XV, foi durante sua longa história uma instituição de prestígio. Criada como “Universidade de Louvain” conheceu uma história atribulada, viu passarem por seus muros eminentes personagens, como professores e alunos, que formaram, através dos séculos, a sociedade da região que, à época, incluía a atual Holanda e a atual Bélgica. Esteve sob domínio francês e holandês até a secessão e a formação do reinado da Bélgica, em 1830.

A Universidade de Louvain ou Studium Generale Lovaniense ou Universitas studiorum Lovaniensis, foi fundada, em 1425, por um príncipe francês, Jean de Bourgogne, Jean IV, duque de Brabante (província belga), com o consentimento do papa Martinho V. Nessa época, observava-se uma constante histórica. A fé cristã em lugar de ser individualista, sempre teve a tendência de se incorporar nas instituições, em particular aquelas dedicadas ao ensino. O ensino das artes liberais e outros saberes, como o direito e, sobretudo, a medicina não constituia um fim em si, mas um meio de se atingir o fim último da existência, a saber a fé que conduz à salvação. Desse modo, as faculdades de teologia se desenvolveram rapidamente no seio das universidades.

Na Universidade de Louvain, em 1432, sete anos após a fundação, foi instalada a Faculdade de Teologia. Engajada nos debates da sociedade desde a origem da Reforma, a Faculdade de Teologia da Universidade de Louvain foi a primeira, em novembro de 1519, a condenar abertamente Martinho Lutero, antes mesmo da bula de excomunhão de Leão X, no ano seguinte. Claro que, atualmente, por conta do espírito ecumênico deve-se questionar o sentido dessa condenação radical. No entanto, à época, não deixava de ser um tipo ousado de engajamento.

A universidade foi fechada oficialmente, em outubro de 1797, em aplicação da lei de 15 de setembro de 1793, que suprimia todos os colégios e universidades da república francesa.

A antiga Universidade de Louvain, que teve como professor e reitor Cornelius Jansen ou na forma latina Jansenius, o defensor da doutrina agustiniana da graça, foi até o fim do antigo regime, justamente o grande centro doutrinal do jansenismo na Europa.

Em 1819, foi reaberta com a designação de Universidade de Estado de Louvain, mas, novamente, fechada em 1883. Em 1835, os bispos belgas reinstituiram a antiga Universidade de Louvain com a designação de Universidade Católica de Louvain pela carta pontifícia de 13 de dezembro de 1833, de Gregório XVI, no espírito das universidades gregorianas da reconquista católica empreendida por esse papa. A direção da universidade foi colocada sob a autoridade direta dos bispos belgas.

No dia 4 de agosto de 1879, no segundo ano de seu pontificado, o papa Leão XIII publicou a carta encíclica Aeternis Patris, sobre a restauração da filosofia cristã conforme a doutrina de Santo Tomás de Aquino. Na sua primeira carta encíclica, Inscrutabili Dei consilio, de 21 de abril de 1878, ele assinalou a suprema importância da filosofia tradicional para as escolas católicas, do ponto de vista social, do ponto de vista da exposição e da defesa da fé cristã, assim como da perspectiva do progresso de todas as ciências. Entretanto, sendo conveniente reatar com a grande tradição medieval, ponderava como impositivo o discernimento levando-se em conta o progresso das ciências dos tempos modernos e da necessidade de se adaptar às concepções antigas às condições do pensamento atual. Leão XIII conhecia bem a Bélgica, pois havia sido núncio apostólico em Bruxelas, de 1843 a 1846. Na época, a Universidade Católica de Louvain era a única universidade católica completa e essa é a característica que a diferenciou desde então. Leão XIII estava ciente das vantagens incomparáveis que representava, para a renovação das concepções filosóficas medievais, esse meio católico no qual todas as ciências eram ensinadas e na qual especialistas de todos os ramos do saber humano estavam em constante interação no ensino e na pesquisa; e que recebia já estudantes de inúmeros países estrangeiros.

No dia 25 de dezembro de 1880, Leão XIII envia uma carta pontifícia ao arcebispo de Malines, o cardeal Deschamps, para lhe solicitar providências no sentido de criar uma cadeira especial de filosofia de Santo Tomás de Aquino na Universidade Católica de Louvain. Em 1889, Leão XIII solicitou aos bispos belgas que criassem cadeiras de filosofia agrupadas em um «Instituto Superior de Filosofia» no seio da Universidade Católica de Louvain. O texto fundador foi a carta pontifícia de 8 de novembro de 1889. Os bispos nomearam como seu primeiro «presidente» Monsenhor Desiré Mercier, que seria mais tarde nomeado cardeal. Desiré Mercier era titular de um curso de «filosofia especial segundo Santo Tomás». Com o auxílio do papa, ele conseguiu obter a criação de um verdadeiro instituto ao qual acrescentou , com anuência de Leão XIII, a denominação «Escola SantoTomás de Aquino» para bem notar que o novo instituto tinha como objetivo central a renovação do tomismo preconizado por Leão XIII em sua carta encíclica, acima citada. Na mente de Monsenhor Mercier o neo-tomismo deveria constituir uma filosofia original em debate com com os problemas de seu tempo, e, especialmente, com os problemas das ciências da natureza e as ciências humanas.

Desde então, o novo Instituto consolidou sua missão e ampliou sua presença, com disciplinas filosóficas para a Universidade toda. Consolidou sua reputação segundo as diretrizes da encíclica como havia solicitado o papa aos bispos belgas. Sua atuação se deu em quatro direções principais atribuídas progressivamente ao ensino e à pesquisa: o estudo histórico e crítico dos grandes filósofos, reflexão epistemológica sobre as técnicas e métodos das ciências, o questionamento sobre as relações entre a fé cristã e a razão, a interrogação sobre a interação da filosofia com a vida social.

O Instituto Superior de Filosofia ocupou um lugar relevante na Universidade Católica, pela característica de sua implantação, seguindo as diretrizes diretas do papa Leão XIII, e pelos propósitos de sua vocação direcionada ao ensino da Filosofia em atenção à carta encíclica Aeterni Patris, assumindo o compromisso de trabalhar na renovação do pensamento de Tomás de Aquino e de seu pensamento erigido como modelo da formação filosófica para os futuros presbíteros. A seriedade com que tomou para si a relevância do diálogo constante entre a filosofia e as ciências foi amplamente facilitada pelo fato, acima mencionado, de que a Universidade Católica de Louvain foi, desde essa sua implantação, herdeira da antiga Universidade de Louvain, como Universidade Católica, a única universidade católica completa no mundo, abrigando todos os ramos do saber ora existentes.

A Faculdade de Teologia, Sacra Facultas Theologiae, foi erigida no dia 7 de março de 1432, pelo papa Eugênio IV. Os mestres da Faculdade se interessavam, sobretudo, por questões de moral e a faculdade permaneceu, de início, bem impermeável aos progressos do humanismo, abrindo-se, pouco a pouco, posteriormente, às pesquisas de teologia positiva. Foi em Louvain que foi redigida, ao final de 1519, a primeira censura de toda a cristandade contra os escritos de Lutero, tendo a Faculdade de Teologia redigido, à intenção dos dominicanos, um resumo das verdades religiosas atacadas pelo inovador. O teólogo alemão Hubert Jedi, em sua obra História do Concílio de Trento, tomo 1, considera esse documento como a melhor realização da teologia pretridentina.

Creio pertinente afirmar-se da Universidade Católica de Louvain que ela, nos dizeres de João Paulo II, “compartilha com todas as outras universidades aquele gaudium de veritate, tão caro a Santo Agostinho, isto é, a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la em todos os campos do conhecimento” (Ex Corde Ecclesiae 1).

Escrito por Newton Aquiles von Zuben. Publicado originalmente em Jornal da PUC Campinas.

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