Comentários ao texto do geneticista Eli Vieira

Recentemente, no site do geneticista Eli Vieira, deparei-me com um texto, com 10 argumentos a favor da descriminalização do aborto até a 12º semana de vida, em apoio ao Conselho Federal de Medicina, que divulgou nota em prol do aborto legal. O texto é interessante, pois enumera muitos dos argumentos utilizados pelos que defendem a descriminalização do aborto. Tomei a liberdade de refutá-los. Abaixo segue o texto original, em letras pretas, e meus comentários, em azul.

 

Pela defesa da vida através da descriminalização do aborto: uma nota de apoio ao CFM

1 – A questão sobre o aborto não diz respeito à “vida”, mas à “vida humana”, ou seja, ao indivíduo. Não é uma questão de saber como começa a vida, é uma questão de saber em que etapa do desenvolvimento o nosso Estado laico deve aceitar um embrião como um cidadão digno de direitos.

No primeiro parágrafo o autor já admite falar de vida humana. Afinal, se um zigoto, um embrião ou um feto estão vivos, de que tipo de vida se trata, que não a humana?  Quanto aos direitos, é importante lembrar que, já que falamos de vida humana, devemos falar também de dignidade, e se há dignidade, há direitos humanos. Não podemos negar a dignidade a um nascituro, que é um ser humano, baseando-se apenas na idade gestacional.

2 – Para estabelecer se um embrião é um cidadão, o Estado deve ser informado pela ciência sobre quando surgem no desenvolvimento os “tributos mais caracteristicamente humanos.

O autor, que é um “cientista”, acha que cabe apenas à ciência determinar quem merece ou não a dignidade humana e o direito à vida. Este argumento é anacrônico e remonta à Grécia antiga, quando, após o nascimento, os “sábios” determinariam se o nascido era humano ou “monstro”. Se o deixariam viver ou se o matariam, caso a criança fosse, por exemplo, mal formada. No mais, é interessante ressaltar que o argumento que afirma que a vida do indivíduo humano começa na concepção é científico, confirmado pela embriologia. O fato de os “atributos mais caracteristicamente humanos” não terem ainda se desenvolvido não faz com que a vida ali presente (e nem o próprio autor nega isto) não seja humana.

3 – Os atributos mais caracteristicamente humanos não são ter um rim funcionando, nem um coração batendo, mas ter um cérebro em atividade. Isto é razoavelmente estabelecido porque é a morte cerebral que é considerada o critério para dizer quando uma pessoa morreu, e não a morte de outros órgãos. Por isso mesmo transplante de coração não é acompanhado de “transplante” de registro de identidade.

4 – Se a morte do cérebro é o critério médico que o Estado aceita para considerar o indivíduo humano como morto, o início do cérebro deve ser logicamente e necessariamente o critério para considerar o início do indivíduo, e não a fecundação.

Comparar a vida de um ser humano com morte cerebral, no fim de sua vida, à de um ser humano, no início de seu desenvolvimento, com a vida toda pela frente, é um argumento perverso, torpe, grotesco. Utiliza-se a morte para negar a vida. Um zigoto, um embrião ou um feto em gestação, se deixados em paz, terão condições de desenvolver os “atributos mais caracteristicamente humanos” que o autor coloca. Ao contrário, um ser humano com morte cerebral, se deixado em paz, irá falecer. Não se trata de discutir potencialidades, o que, de acordo com os defensores da legalização do aborto, não tem sentido – embora discorde. O que se discute é existência de  vida humana, não potencial e subjetiva, como seria o caso de gametas ou mesmo embriões concebidos in vitro, mas real e objetiva. A partir da concepção, o que existe é uma vida humana de fato, não potencial, que, livre da violência de um aborto induzido, ou da infelicidade de um aborto espontâneo, chegará ao nascimento em poucas semanas.

5 – Considerar a fecundação como o início do indivíduo humano é perigoso, porque é definir um indivíduo apenas por seus genes. Isso é determinismo genético.

Os genes não são determinantes exclusivos da individualidade, que, aliás, não é determinável em momento algum, pois a vida é fluida, e nossa individualidade se modifica a cada instante, conforme o ambiente e as experiências vividas, inclusive no útero materno; mas a carga genética, estabelecida na fecundação, é a origem desta individualidade. Isto não é determinismo genético, que é a crença de que todas as características físicas e comportamentais dependem exclusivamente dos genes. Perigoso é crer que outros critérios, como o tempo gestacional ou a atividade cerebral do nascituro “determinem” se este é ou não humano, se é alguém mais ou menos merecedor da dignidade. Isto sim seria uma espécie de determinismo biológico anacrônico e perverso. Os direitos humanos são inerentes à vida humana. Não há vida humana mais ou menos digna, se houvesse, isso representaria simplesmente a negação dos direitos humanos como um todo.

6 – O cérebro não tem sua arquitetura básica formada no mínimo até o terceiro mês da gestação. Isso significa que o embrião não percebe o mundo, não tem consciência, é um punhado de células como qualquer pedaço de pele. Por isso não é moralmente condenável que as mulheres tenham direito de escolher não continuar a gestação antes deste período.

Todos os seres humanos já passaram pelo estágio em que, segundo o autor, eram um “punhado de células como qualquer pedaço de pele”. O próprio termo utilizado demonstra um desprezo enorme pela vida humana,  que é comparada,  grosso modo, a um cisto, a um furúnculo, que podem ser extirpados sem qualquer consequência. Repetimos: um zigoto, um embrião ou um feto em gestação, se deixados em paz, em poucas semanas se desenvolverão e se tornarão crianças. Compará-los a um “punhado de células como qualquer pedaço de pele”, cuja vida não tem importância, nem valor, nem dignidade, é que é moralmente condenável

Na figura abaixo podemos ver o “punhado de células como qualquer pedaço de pele”, com três meses de gestação, idade limite, segundo os defensores da legalização no Brasil, para a realização do aborto.

7 – Usar o argumento de que o embrião ou o zigoto tem o potencial de dar origem a um ser humano para protegê-lo não vale, porque seria o mesmo que tentar proteger os óvulos que se perdem logo antes das menstruações em todas as mulheres, ou os espermatozoides que são jogados fora na masturbação masculina. Além disso, hoje a ciência sabe que toda célula humana, até as células da pele, tem o potencial de dar origem a um ser humano inteiro, bastando para isso alguns procedimentos de clonagem. No entanto nós destruímos essas células diariamente: arrancando a cutícula, roendo as unhas, passando a mão no rosto, arrancando fios de cabelo, etc. Potencial não concretizado não é argumento para defender coisa alguma.

Infelizmente, este é o mais absurdo e “moralmente condenável”  argumento do autor. Por mais que a ciência teorize sobre o potencial de se criar seres humanos a partir de células humanas diversas, compará-las a embriões em gestação é uma assalto à inteligência. Óvulos perdidos nas menstruações, espermatozoides na masturbação, cutículas e fios de cabelo, se deixados em paz, não se desenvolverão até se tornarem novos seres humanos; zigotos, embriões e fetos já são seres humanos.

8 – Se você acha que o embrião precoce ou o zigoto tem consciência, é responsabilidade sua provar isso, não é o que os cientistas dizem. E num Estado laico, vale o que pode ser estabelecido independentemente da crença religiosa. Se sua crença religiosa diz que uma única célula é consciente, você não tem o direito de impor sua crença a ninguém ao menos que possa prová-la e torná-la científica. Todos os que tentaram fazer isso falharam até hoje: uma célula formada após a fecundação não é essencialmente diferente de qualquer outra célula do corpo.

Normalmente, são os defensores da legalização do aborto os que pretendem associar a vida humana à existência da consciência, não os que a combatem. Lembremos que os argumentos religiosos não são os únicos contrários à legalização do aborto. Entre os que combatem a legalização do aborto com argumentos laicos, ninguém afirma que o zigoto ou embrião têm consciência. No mais, repetimos, é absurda a afirmação de que o zigoto em gestação não seja diferente de qualquer outra célula do corpo.

 9 – A vida, em sentido mais amplo, que inclui os outros animais, as plantas e os microorganismos, é um processo ininterrupto que começou neste planeta há aproximadamente 4 bilhões de anos atrás. Por isso é importante reiterar: não é o “começo da vida” que está sendo debatido, mas sim o começo do indivíduo humano como um ser consciente, dotado de uma mente e digno de proteção do Estado.

É claro que não estamos debatendo o início da vida na Terra, caso contrário estaríamos vendo um episódio do Cosmos de Carl Sagan. Mas já que estamos falando da vida na Terra, é importante compreender que todas as formas de vida merecem ser tratadas com dignidade e respeito, pois a nossa vida depende delas . Por outro lado, afirmar que somente indivíduos conscientes, “dotados de mente”, são dignos de proteção do Estado soa anacrônico e reacionário. Afirmaríamos então que pacientes em coma automaticamente perderiam a proteção do Estado? Todos os seres humanos são dignos de direitos e proteção do Estado.

10 – Concluindo, é a mulher, um ser humano adulto, uma cidadã com direitos, quem merece prioridade de proteção, e não um embrião de poucas semanas. Se ela não se sente preparada para cuidar de uma criança, ela deve ter o direito de interromper sua gestação, caso esta gestação esteja no começo e o embrião não tenha cérebro desenvolvido. Deixar as mulheres terem poder de decisão sobre seus próprios corpos é reconhecer um direito natural delas e assegurar que só tenham filhos quando sentirem que podem trazê-los a este mundo com amor e saúde, para que o próprio mundo em que crescerão seja também mais saudável.

E é por isso que defender que o aborto seja uma escolha, e não um crime, é também defender a vida humana.

Ao colocar desta forma, o autor deixa implícito que aqueles que defendem os direitos do nascituro não defendem os direitos das mulheres. O que é uma inverdade. Ser feminista não significa ser a favor do aborto. As feministas pró-vida, por exemplo, veem a necessidade do aborto como uma consequência da opressão à qual as mulheres são submetidas, sem o apoio social (não só do Estado, mas da sociedade) para criarem seus filhos com dignidade. O direito ao aborto não resolverá a opressão contra as mulheres, ao contrário, apenas diminuirá a pressão que ela seja combatida. O aborto é uma violência e em nada contribuirá para diminuir a hostilidade de um mundo machista contra as mulheres. Em nada diminuirá a violência contra as mulheres.  As mulheres devem ter todo o direito de decidir sobre seus corpos e escolher o melhor momento para serem mães, entretanto, a partir do momento em que houve a concepção, não se trata apenas do corpo da mulher, pois há outra pessoa envolvida, uma pessoa em situação certamente ainda mais frágil, não responsável por sua situação, merecedora de dignidade e proteção contra uma decisão tão arbitrária e violenta como o aborto. O autor fala em “direito natural” da mãe. Ora, de todos os “direitos naturais” do jusnaturalismo, não há dúvida de que o direito à vida seja o mais importante, o mais básico de todos. No caso da gestação, há direitos conflitantes, o da mãe, ao próprio corpo, e o do nascituro, à vida. E se há direitos conflitantes,  conforme dizia Norberto Bobbio, um dos maiores contribuintes para que a sociedade ocidental compreendesse os direitos humanos, a escolha é necessária: entre o direito à vida e o direito ao próprio corpo, o primeiro deve ser escolhido.

P. S.: Se você já se chocou com imagens sangrentas usadas pelo lado sem argumentos, o lado dos autointitulados “pró-vida”, há uma forma de tratar seu trauma: ver qual é a aparência de um aborto legal e seguro, feito respeitando o limite de 12 semanas que o Conselho Federal de Medicina defende. Você pode fazer isso neste site, e prometo que não vai se chocar: http://www.meuaborto.com.br/

O intuito do site mencionado é demonstrar que o aborto não passa de um procedimento médico, como tantos outros, que pode ser feito com segurança e higiene, não a interrupção da vida de um ser humano em gestação. Obviamente, o aborto não foi exibido no site. Não se mostrou a violência a que o feto foi submetido, quando sugado por uma bomba à vácuo. Dependendo da idade gestacional, antes da sucção, o feto é picotado ainda no útero. Mesmo assim, é incrível crer que a imagem de um ser humano liquefeito em um pote com sangue não seja chocante, ou mais, que não seja “moralmente condenável”.

Escrito por Leonardo João Zamboni. Blog Ateus contra o aborto.

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